“Casa é tanto um lugar (…) físico como um conjunto de sentimentos. (…) o lar é uma relação entre materialidade e reinos e processos imaginativos, em que a localização física e da materialidade e os sentimentos e ideias estão unidos e se influenciam mutuamente, ao invés de estarem separados e distintos. (…) a casa é um processo de criação e compreensão de formas de habitação e de pertença. A casa é vivida, bem como imaginava. O que significa casa e como ela se manifesta materialmente é algo que é criado e re-criado de forma contínua através das práticas domésticas de todos os dias, que são, elas próprias, ligadas ao imaginário espacial da casa”.1 A frase supramencionada constitui-se como ponto de partida da presente reflexão, num exercício que marcará de forma significativa a minha abordagem à forma de projetar casas.
Tendo eu um sentimento de afinidade pelo tema da casa, nomeadamente unifamiliar, a referida frase permitiu-me fazer uma espécie de brainstorming introspectivo que procurasse a redefinição de uma série de noções relativas a esse mesmo tema. Impunha-se pois um exercício de auto questionamento em que se torna essencial procurar o âmago desses conceitos que, até aqui, me parecem básicos, familiares e, de certo modo, naturais e intrínsecos. No fundo sempre os soube em mim, mas nunca os compreendi verdadeiramente. Esse percurso apesar de me aproximar das respostas, acaba por me levar a mais questões e, consequentemente, a novas reflexões.
- Casa | Lar VS. Casa | Domicílio
Como primeiro passo evidencia-se a necessidade de, pragmaticamente, definir e distinguir conceitos. Interessa-me que casa?
Tenho usado o termo casa para definir a ideia do que quero tratar, no entanto, o que verdadeiramente me importa é a casa enquanto lar. Não enquanto domicílio. Na simples análise etimológica das palavras, verifica-se – em lar – um aspecto que, não dizendo particularmente nada, diz tudo. Ao conceito lar está associada alguma transcendência que outros sinónimos de casa, como domicílio, não possuem.
Há, efectivamente, um ponto fundamental nesta noção de casa que me fascina, evidente nas palavras de Monteys e Fuertes ao afirmar que “uma casa é uma habitação mais pessoas que habitam e os objectos que guarda” 2, ou seja, a casa para lá da sua materialidade desprovida de essência. Assim, a ideia de casa que me interessa acarreta, sobretudo, significado, cunhado na relação que esta é capaz de estabelecer com quem a vive. No entanto, não desprestigio a casa enquanto estrutura física! Aliás, como arquitecto não o poderia fazer, mas a ARQUITECTURA também não é capaz de produzir objectos destituídos de conteúdo.
Torna-se pois óbvio que, nesta dicotomia LAR vs. DOMICÍLIO pretendo separar-me dessas casas que mais não são do que máquinas de habitar, incapazes e incapacitantes de/no gerar de efectivas ligações com quem as habita. Estes aspectos, para lá de sublinharem a casa como conceito a tratar levam-me a um outro patamar de reflexão: a existência de diferentes conceitos de casa implica a existência de diferentes conceitos sobre as pessoas que as projetam e de que as habitam?
- Arquitecto VS. Projetista & Habitante Vs. Utilizador
Parece-me evidente que sim. Comecemos por quem desenha as casas. Compete a quem está incumbido de tão árdua tarefa a capacidade de ser capaz de analisar “em profundidade os hábitos, as necessidades e as aspirações da família que a irá habitar. É necessária uma análise particularmente cuidada para que a resposta projetual seja muito detalhada, no respeito do programa, das funções e do aspecto estético” 3. Reside pois no Arquitecto essa capacidade de conseguir o projeto de uma casa capaz de estabelecer, com quem a viverá, empatia, afinidade e compatibilidade. Esta capacidade, traduzida na sobreposição plena das esferas função e uso, torna as casas melhores uma vez que respondem ao que se pretende delas. Por outro lado, a sua ausência traduz-se num mero desenho carecido de sentido, incapaz de gerar casas e gerador de embalagens reduzidas de significado.
Neste sentido a casa só se torna efectivamente casa quando passa a ter quem lhe confira essa aptidão, uma vez que esta é carimbada pela vivência de quem lá mora. É, aliás, esse grau de habitabilidade que efectivamente confere ao edifício a designação, ou não, de casa. Esta capacidade é explicada de modo muito clara por Akiko Bush, quando refere que “há momentos em que a própria ideia de casa parece ser uma preposição impossível. Há outros momentos em que as nossas casas expressam infinitas possibilidades, quando reflectem exactamente quem somos e o que poderíamos e poderemos ser” 4. Deste modo, esta dualidade implica, por si só, diferentes tipos de moradores: os que efectivamente habitam as casas, habitantes, e aqueles que apenas as utilizam, utilizadores. Estes últimos não são pois capazes de criar qualquer envolvimento empático com a casa onde moram (por culpa deles e/ou da própria casa), limitando-se a utiliza-las enquanto objecto ausentando desse uso qualquer conexão emotiva, esvaziando a casa de qualquer significado que não o de objecto utilitário. Em oposição, os que designo por habitantes assumem-se pelo modo como coexistem com a casa, num sentimento de pertença mútuo. Aliás, aspecto nada despiciendo é o facto do termo pertença surgir amiúde quando se trata desta relação. Ingemar Lindberg, refere que “a estrutura básica da [casa] é a cooperação e o sentimento de pertença” 5.
Assim, concisamente, o que interessa nesta minha reflexão é sublinhar essa capacidade de simbiose entre casa e habitante que se traduz por uma relação tanto física como emocional entre ambos de modo a que “a casa [possa] ser, mais do que tudo, o lugar de cada um e cada um que a habita a sinta como tal, no sentido em que “uma casa está sempre ligada a alguém que a representa, ou que se deixa representar por ela” 6.
- Habitar | Função e Uso
Os aspectos supramencionados ao longo do presente texto conduzem-me a um novo ponto de reflexão: o que é habitar e de que forma dentro desse conceito se co-relacionam os sub-conceitos função e uso.
De facto, ao alargar a minha reflexão para lá do carácter friamente arquitectural, verificamos nestas relações casa/habitante a existência de factores que têm uma influência significativa nesta relação. O aspecto família, a dualidade privacidade/intimidade e a envolvente social, constituem-se como os mais significativos factores desse ponto de vista. Pelo olhar sociológico, “o conceito de habitar permite centrar a atenção sobre os fenómenos sociais que ocorrem na ligação concreta que cada sociedade estabelece entre os seus habitantes e as casas que habitam. (…) O núcleo do conceito habitar, tal como o de habitante, refere-se à família que habita numa casa, e que por sua vez se insere numa sociedade” 7. Ou seja, percebemos que, numa esfera mais alargada, começamos por ter – como camada mais externa da envolvente do problema – a realidade social que o envolve, o que no fundo é evidente, natural e inevitável.
É, no entanto, a questão do indivíduo que surge como núcleo central de todo este problema, no sentido da relação que este é capaz de criar com a casa e vice-versa. Como vimos anteriormente, importam-me, fundamentalmente as casas e os habitantes que interagem no sentido de despertar o melhor de cada um, o que, consequentemente nos levará a situações em que função e uso se tendem a fundir e crescer numa abrangência operacional maior, carregada de significados. Este aspecto é particularmente rico nas casas ocidentais contemporâneas, onde os espaços se assumem nessa promoção de intensas vivências multi-funcionais e multi-significantes. O exemplo dado por Adams – citado por Susan Kent – é categórico nesse sentido: “(Neste aspecto, pelo comportamento humano real, não existem espaços monofuncionais em qualquer casa euro-americana). O “típico” quarto é usado para muitas actividades. A cama é usada para receber um corpo em cima, mas a sua função também inclui a provisão de um lugar para dormir, descansar, ficar bem, morrer, ter sexo, procriar, ver TV, ler, cuidar de um bebé, desembrulhar presentes, colocar o casaco, e servir de trampolim… Lamento, mas a noção de monofuncionalidade na cultura euro americana não existe e provavelmente nunca existiu” 8.
No entanto, volto a recuperar a ideia, tal vivência carregada de significado só é possível quando as casas se assumem conforme as defini previamente e quando as pessoas que lá vivem são verdadeiros habitantes das mesmas. Além disso, impõe-se que a relação, quer física, quer emocional, entre ambos se sustente por um equilíbrio respeitador no sentido em que dominância de um sobre o outro pode subverter um, outro, ou até ambos na sua própria essência (recordamos aqui a importância do arquitecto, ilustrada por Adolf Loos na história “Pobre Homem Rico”), aspecto intrínseco nas palavras de Gilles Barbey, quando refere que “a vida só se pode emancipar e desenvolver uma personalidade positiva quando se encontra num ambiente favorável. Mas os modelos espaciais que consideramos são extremamente frágeis, sempre propensos a transformarem-se no seu oposto” 9.
Deste modo, e para lá do significado inerente a estes exemplos, a função da casa, no seu aspecto de usabilidade (quase) plena, tem de permitir quer a privacidade do seu habitante e da família que a habita, quer a intimidade de cada indivíduo que constitui a família. Assim, não será a função principal da casa permitir assumir-se como o espaço físico cujas características proporcionam a quem as verdadeiramente as habita a capacidade de introspectivamente se encontrar?
- A essência de habitar | A essência da casa
No fundo, assim me parece. A verdadeira essência da casa e da forma como o habitante a vive, está aí. Na capacidade que casa e habitante têm de se conjugarem, na forma como a casa é pensada e materializada no sentido de permitir essa ligação com quem a habita. E este aspecto é fundamental à arquitectura da casa… e, no fundo, a tudo o que nos envolve, uma vez que “examinada nos horizontes teóricos mais diversos, parece que a imagem da casa se transforma na topografia de nosso ser íntimo” 10. E todos estes aspectos, de tão portentosos que são, imputam à Arquitectura e a quem a faz uma responsabilidade enormíssima, exigindo que a reflexão em redor destas questões relacionadas com a casa se faça uma e outra vez no sentido de percebermos de que modo se pode fomentar, entre casa e habitante, uma relação franca e plenamente válida, quer na sua dimensão física, quer na sua dimensão emocional e até simbólica.
Bibliografia:
7ALCALÁ, Luís Cortez, “La question residencial – Bases para una sociologia del habitar”. Madrid: Editorial Fundamentos, 1995.
10BACHELARD, Gaston, “A Poética do espaço”. (trad. António da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal) In: Col. Os Pensadores. 3.ed. São Paulo: Abril, 1988.
9BARBEY, Gilles, “L’Evasion Domestique – Essai sur les Relations d’Affectivité au Logis”, Lausanne: Presses Polytechniques et Universitaires Romandes, 1990.
1BLUNT, Alison; DOWNING, Robyn, Home. Nova Iorque: Routledge, 2006.
4BUSH, Akiko, Geography of Home – writings on where we live. Nova Iorque: Princeton Architectural Press, 1999.
8KENT, Susan, “Domestic architecture and the Use of Space – An interdisciplinary cross-cultural study”. Nova Iorque: Cambridge University Press, 1993.
2MONTEYS, Xavier; FUERTES, Pere, Casa Collage – Un ensayo sobre la arquitectura de la casa. Barcelona: Gustavo Gili S. A., 2001.
5REED, Christopher, “Not at Home – The suppression of domesticity in modern Art and Architecture”. Londres: Thames and Hudson, 1996.
6RODRIGUES, Ana Luísa, A habitabilidade do espaço doméstico: O cliente, o arquitecto, o habitante e a casa. Tese de Doutoramento em Arquitectura. Guimarães, UM, 2008.
3SIZA, Álvaro, Imaginar a Evidência. Lisboa: Edições 70, 2000.